Entre o rigor da escola francesa e a alma do território português, Julien Montbabut constrói uma cozinha que começa bem antes do prato. Nesta viagem do campo à mesa, acompanhamos o chef do Le Monument ao coração verde de São Torcato, onde o espargo se colhe com precisão e respeito e onde a gastronomia se revela como um acto de escuta.
Julien Montbabut chegou ao Porto para cozinhar em francês. Mas foi ao aprender a ouvir o país — com tempo, com humildade e com uma colher de pau na mão — que encontrou a sua verdadeira voz. Hoje, no restaurante Le Monument, em plena Avenida dos Aliados, serve-se uma cozinha que nasce da terra, atravessa o rigor clássico e floresce no prato com elegância depurada. Esta é a história de uma viagem — do campo à mesa, do espargo à estrela, da tradição à reinvenção.


O campo onde tudo começa
A nossa viagem começa em São Torcato, nos arredores de Guimarães, onde o verde é mais verde e o tempo avança de forma diferente. Entre vinhas, carvalhos e campos de cultivo, encontramos a Espargos Verdes, projecto de Pedro Martins da Costa e Sara Taveira que, desde 2018, se dedica exclusivamente à cultura biológica de espargos. O nome é descritivo, mas não diz tudo. Há ali mais do que um cultivo, há uma filosofia.
“Começámos esta loucura com uma ideia muito simples: fazer bem”, recorda Pedro, que é enólogo de formação e agricultor por convicção. “Fomos aprender, estudar, testar. E hoje sabemos que só se pode colher o melhor, quando se respeita o ritmo da terra.” A plantação ocupa seis hectares e opera com uma biodiversidade visível, quase pedagógica. A cultura do espargo exige precisão milimétrica — colhe-se no instante certo ou perde-se. O rebento nasce, cresce e pede para ser apanhado como se desse sinais subtis de maturidade que só quem vive ali sabe ler.
Julien Montbabut foi um dos primeiros chefs a compreender a delicadeza desse processo. “Encontrei-os durante a pandemia. E percebi logo que, antes de trabalhar um produto, queria vir aqui, ver com os meus olhos. O espargo não é só um vegetal bonito no prato, é uma planta sensível, um marcador de tempo.” Hoje, Julien visita a Espargos Verdes regularmente. A ligação é mais do que profissional: é um acto de respeito.


Durante a visita, observamos (e experimentamos) a meticulosa colheita manual, o cuidado com cada rebento. Produzem cerca de 40 toneladas por ano, com variedades que se alternam ao longo da época para garantir consistência e qualidade — dois valores que os ligam directamente ao mundo da alta gastronomia. A exigência dos chefs ensinou-lhes a planear com detalhe, a testar limites. “Já fomos além do razoável para perceber onde está o limite”, confessa Pedro. “Agora sabemos onde queremos ficar.”

Uma mesa no solar
Foi ao final dessa manhã de Primavera, com o sol já a prometer calor, que seguimos com Julien até ao solar da família de Pedro, uma casa senhorial de pedra, herdeira de várias gerações e memórias. Recebeu-nos Maria de Fátima, a cozinheira da casa, e com ela um ambiente de autenticidade rara. O almoço foi simples, mas memorável como só o que é profundamente genuíno pode ser.
Na velha cozinha de campo, entre louça antiga e garrafas de vinho da região dos Vinhos Verdes, Julien assumiu o comando dos tachos com a mesma precisão com que lidera o passe no Le Monument. Cozinhou espargos brancos e verdes, os mesmos que tínhamos visto nascer naquela manhã. Assados ao sal, preparados com butarga, acompanhados por creme de amêndoa e emulsão de poejo. Entre tábuas de queijos locais, enchidos e conversas soltas, revelou-se algo mais íntimo do que um almoço entre conhecidos: uma comunhão de valores.
Foi ali, com copos a tilintar e os aromas da terra ainda por cima da roupa, que se tornou claro o quanto esta relação entre chef e produtor transcende o profissional. “Cozinhar começa muito antes da cozinha”, disse-nos Julien, com um sorriso que diz mais do que as palavras, “começa aqui.”
Um chef em reconstrução
Julien Montbabut não é um nome novo no vocabulário da alta cozinha. Formado na exigente escola da gastronomia francesa, liderava em Paris um restaurante com estrela Michelin quando surgiu o convite para abrir o Le Monument, no Porto, integrado no hotel cinco estrelas Maison Albar – Monumental Palace. Em 2018, trocou a capital francesa por uma cidade de ruelas de granito e janelas com vista para o Douro. Com ele veio Joana Thöny Montbabut, chef pasteleira e companheira de vida, e uma missão clara: criar um restaurante francês em solo português, com ambição Michelin.
Nos primeiros tempos, o plano foi executado à risca. Produtos importados, técnica irrepreensível, serviço de rigor. Mas algo não ressoava. “Estávamos a cumprir uma missão, mas não a viver o lugar”, admite. A pandemia, por muito cruel que tenha sido, trouxe o tempo necessário para reflectir. E, com ele, a mudança.
“Foi a primeira vez que jantei todas as noites com os meus filhos. E, de repente, percebi que não conhecia verdadeiramente Portugal.” Esse período de suspensão permitiu-lhe sair da cozinha, visitar mercados, conversar com produtores, escutar o território. “Não queria fazer cozinha portuguesa. Mas queria conhecer Portugal, os seus produtos, o seu ritmo. Só assim faria sentido.”
Julien aprendeu a falar português — e fá-lo com um sotaque ainda marcado, mas com uma clareza que só vem da vontade genuína de integração. Recusa a ideia de fusão. Prefere falar em afinamento. A sua cozinha continua a ser de matriz francesa, mas tem agora um coração português. E isso muda tudo.
A casa onde tudo converge
O Le Monument é o reflexo dessa metamorfose. Instalado num palacete com alma art déco, onde os detalhes dourados e o veludo profundo contrastam com a leveza dos pratos, o restaurante propõe um menu de degustação intitulado “Um Itinerário por Portugal”. É mais do que um nome. É uma promessa.
A experiência começa, simbolicamente, na cozinha. Os clientes são recebidos por Julien, que serve pessoalmente os primeiros momentos da refeição. Ali, entre boiões de vinagres infusionados com ervas da estação, inicia-se a viagem. Os snacks revelam já a intenção: precisão técnica com emoção local.
O menu percorre o país com gestos bem estudados. O pão folhado com azeite de Vila Nova de Foz Côa serve de preâmbulo e de manifesto: tradição portuguesa com execução francesa. Segue-se o espargo de São Torcato, assado ao sal e servido com creme de amêndoa e emulsão de poejo — uma homenagem directa à manhã que passámos no campo. A crosta de sal, removida com cuidado na sala, transforma o prato num momento cénico. Simples, mas inesquecível.
Outros pratos constroem a narrativa com o mesmo equilíbrio entre território e savoir-faire: sapateira de Vila do Conde com yuzu e mostarda Savora, peixe-galo de Peniche com alcachofra e capuchinha, borrego merino alentejano com espargos brancos. Cada um é uma paragem no mapa. E cada garfada, uma conversa com o país.
A carta de vinhos, curada pelos sommeliers Jean Fernandes e Diogo Pereira, complementa esse percurso com inteligência e irreverência. Há grandes referências nacionais e internacionais, mas também surpresas: vinhos verdes servidos em malga, palhetes e pequenos produtores que revelam a diversidade do solo português.
Nas sobremesas, Joana Thöny Montbabut brilha com composições de rigor e sensibilidade. “Da Joana…” é o nome do trio final, onde se cruzam morangos do Douro, gelado de milho, espuma de pão torrado e trufa. Técnica invisível, sabor luminoso.
Cozinhar é escutar
Julien Montbabut não quer reinventar a cozinha portuguesa. Quer compreendê-la, respeitá-la e, a partir dela, construir uma linguagem própria. A sua cozinha não começa no passe, mas no terreno. E talvez por isso pareça tão verdadeira. Cozinhar, aqui, é um acto de escuta — à terra, aos produtores, ao tempo.
No salão do Le Monument, entre espelhos, candelabros e serviço irrepreensível, não se serve apenas um menu. Serve-se uma visão. Uma ideia de luxo que começa na simplicidade de um produto bem colhido, no gesto certo, na estação certa. Uma cozinha onde o campo e a cidade já não vivem separados. E onde, no final de cada jantar, ficamos com a certeza de que o melhor ainda está por vir — na próxima estação, no próximo espargo, no próximo prato que sabe de onde vem.