Um ciclo de encontros no BAHR & Terrace que celebra o desassossego criativo e o sabor das várias geografias portuguesas.
Chovia sobre Lisboa como se o céu partilhasse da inquietude que inspirou Fernando Pessoa. No quinto piso do Bairro Alto Hotel, o BAHR & Terrace iluminava a noite com a promessa de descoberta. Era o primeiro de um ciclo de Jantares Desassossegados, uma homenagem subtil ao morador ilustre deste bairro e ao seu Livro do Desassossego, onde o prazer da mesa se encontrava com o espírito de inquietação e partilha que move a criação gastronómica.
O chef Fábio Pereira, anfitrião da casa, abriu as portas da sua cozinha para receber David Barata, do restaurante Austa, em Almancil. Dois universos distintos: um minhoto que encontra na precisão e no produto local o fio condutor da sua cozinha; outro sintrense que se fez algarvio por paixão à terra. Unidos pela vontade de desassossegar a rotina e fazer de cada ingrediente uma revelação. “Queremos que estes jantares façam viajar por Portugal através dos sabores”, explicou Fábio Pereira, acrescentando que “cada convidado traz a sua região, o seu olhar. E nós desassossegamo-nos juntos”.
A noite começou com um gesto de boas-vindas que anunciava o tom: um cocktail de morango, xarope de arroz e aguardente de xerez, perfumado por infusão de coco e coroado com uma bolacha dourada alusiva ao diamante Koh-i-Noor.
Chegaram os snacks, o primeiro toque do Algarve trazido por David Barata: barriga de atum rabilho com tomate preservado e massa de pimentão, embrulhada em folha shiso. No copo, Champagne Roger Coulon (Pinot Meunier), a elevar a frescura inicial. Logo depois, Fábio Pereira respondeu com um espeto de polvo grelhado com chimichuri fumado. Sabor profundo e terroso, um toque de fogo que equilibrava a leveza do começo.
No couvert, Barata apresentou o tártaro de borrego de pasto biológico da Quinta do Freixo, com ostra angulata da Ria Formosa e milho crocante, uma composição que traduz a sua filosofia de trabalhar o produto “no seu todo, da forma mais simples”. Do lado anfitrião, chegou o irresistível brioche de massa-mãe com manteiga de alho e cebola tostada, pequeno luxo que arrancou elogios imediatos.


“Trabalhamos o produto como um ciclo completo, nada se perde”, contou o chef algarvio, referindo a forma como fermenta vegetais, reutiliza caldos e até alimenta as suas vinte galinhas com os restos da cozinha do Austa. “É uma forma de respeitar a natureza e o que ela nos dá.”
Seguiram-se os Boletus – apanhados pelo próprio – envolvidos em gema de ovo e espinafres, numa harmonia outonal sublinhada pelo rosé da Quinta do Sobreiro de Cima 2020. Fábio Pereira contra-argumentou com leveza marítima: pregado com limão queimado e alga kombu. Depois, a presa de porco ibérico com couve-flor e acelga, onde o sabor profundo da carne se equilibrava com a delicadeza vegetal.


As sobremesas dividiram-se em dois momentos e duas geografias. O primeiro, criado pelo pasteleiro Guilherme Santana, era um elogio à harmonia: amêndoa do Algarve, azeite verde e pêra rocha, acompanhado por Moscatel de Setúbal 2008 envelhecido em barricas de Cognac. De David Barata chegou uma doçura terrosa: Trompetas Negras (cogumelos selvagens) recheadas de chocolate negro e avelã, inesperadas e requintadas, seguidas de arroz doce e alcavaria, erva digestiva típica do sul.
No final, fica a sensação de que o verdadeiro propósito destes jantares é dar sabor à inquietação, transformar o desconforto em descoberta. Como escreveu Pessoa, “tudo quanto vivo, de fora e de dentro, é uma sucessão de sonhos que a alma me tece”. Assim foi este encontro: uma sucessão de sonhos à mesa, tecidos por duas cozinhas que, juntas, encontraram harmonia no desconforto criativo.
O ciclo continua
Os Jantares Desassossegados prolongam-se até Fevereiro de 2026, com novas geografias a visitar Lisboa: a 11 de Dezembro, David Jesus, do restaurante Seiva (Porto), trará os vegetais para o centro da cena; a 15 de Janeiro, Michele Marques, do Gadanha (Estremoz), dará voz ao Alentejo; e a 21 de Fevereiro, Júlio Pereira, do Kampo (Madeira), encerrará o ciclo com o sabor da ilha.
Cada encontro será, promete o Bairro Alto Hotel, uma viagem sensorial pelo território português. Uma celebração de Portugal e do seu desassossego criativo, vista do alto da cidade, onde a poesia de Pessoa parece ainda sussurrar entre os copos de cristal e o perfume do azeite quente.